Em fins de Dezembro de 2003 o governo dos Estados Unidos informou que passará a exigir que linhas aéreas internacionais coloquem policiais armados em alguns dos vôos programados para sobrevoar território americano. Segundo o Departamento de Segurança Doméstica, estruturado em decorrência dos atentados de 11 de Setembro, trata-se de mais uma medida, de um esforço contínuo que objetivaria tornar as viagens aéreas mais seguras para os americanos e visitantes.
O governo americano esforçou-se por esclarecer que a recente proposta do uso de seguranças armados somente seria aplicada em casos específicos, com base em informes de inteligência que apontassem tal medida como necessária a segurança daquele vôo, porém o procedimento não tem apoio unânime na comunidade internacional. Portugal, Dinamarca, Suécia, Finlândia e África do Sul questionam a validade da medida, em virtude dos procedimentos de segurança rígidos já adotados em terra. Grã-Bretanha e França já haviam admitido a presença de policiais armados em seus vôos, bem como linhas aéreas canadenses e alemãs que confirmaram que vem empregando homens armados em algumas linhas transatlânticas desde os atentados contra as torres em Nova Iorque.
O emprego de agentes armados em aeronaves civis teve origem com as ondas de seqüestros de aviões no final da década de 60 e início dos anos 70. Na América do Norte, América do Sul, Europa e Oriente Médio tais ocorrências de pirataria aérea tornaram-se tristemente comuns e países como Israel e os Estados Unidos passaram a adotar agentes de segurança armados nos vôos, ao mesmo tempo que pressionavam para a adoção de dispendiosos procedimentos de inspeção nos passageiros e em suas bagagens. O espetacular sequestro em Dawson´s Field na Jordânia acabou por conscientizar da necessidade de reforçar a segurança física nas principais áreas aeroportuárias, porém de forma muitíssimo mais discreta também incentivou o emprego velado dos «Air Marshals». Na ocasião três aeronaves (uma americana da TWA, uma da Swissair e outra britânica da BOAC) foram conduzidas por captores palestinos com 400 reféns a um campo de pouso abandonado e depois de atendidas as exigências da libertação de companheiros terroristas presos, os reféns foram liberados e os aviões cinematograficamente explodidos.
Pensar em dispor agentes de segurança armados em aeronaves nunca foi uma tarefa simples até porque os instrumentos delicados, equipamentos, dutos e cabeamentos à bordo não costumam reagir bem ao impacto das balas. A pespectiva de pânico entre os passageiros numa área estritamente confinada torna mais dificil ainda a tarefa daqueles que terão de neutralizar os eventuais terroristas. Equivocadamente, a maioria das pessoas imagina o que a perfuração da fuselagem ou de uma janela por um único projetil possa acarretar o risco de «descompressão explosiva» da aeronave. Tal evento catastrófico que originou uma série de acidentes ocorridos com os primeiros jatos comerciais do mundo, os Comet britânicos no início dos anos 50, estavam ligados a uma deficiência estrutural da aeronave, motivada pelo pouco conhecimento que se tinha na época acerca da pressurização nas estruturas dos aviões de passageiros. No filme 007 contra Goldfinger um simples buraco de bala numa janela do jato executivo deixa os espectadores convencidos de que todos os objetos e pessoas no interior da fuselagem serão implacavelmente sugados e postos para fora, o que de forma alguma é verdade. No mundo real, os compressores bombeiam ar para dentro da cabine numa razão muito mais rápida do que ele pode escapar pela perfutração do tiro e pilotos experimentados, alertados pelos instrumentos de bordo sobre a perda súbita de pressão sempre poderão baixar a altitude de vôo, igualando a atmosfera interna com a externa.
Independentemente de achar oportuno ou não a adoção de «Delegados Aéreos» em vôos de companhias brasileiras, como profissional da área de segurança não posso deixar de avaliar o que será necessário para que possamos cumprir tais missões de forma séria. A tarefa de prover agentes de segurança armados no interior de uma aeronave brasileira obrigatoriamente virá requerer o emprego de armas e munições adequadas, profissionais especialmente selecionados e sobretudo um treinamento intensivo ao qual normalmente a maioria de nossos efetivos de segurança não estão acostumados.
Mesmo sem ter o poder de derrubar o avião, a questão de que disparos pudessem transpassar a forração, as janelas, o chapeamento da estrutura, bem como pudessem transfixiar um eventual terrorista e atingir uma pessoa inocente era algo que preocupava aos planejadores de segurança. A necessidade de empregar de armas de fogo no interior dos aviões acabou gerando uma busca por munições de projéteis mais «macios», de perfil balístico peculiar, que transferissem uma elevada dose incapacitante de energia contra um alvo humano, mas que, ao mesmo, tempo não tivessem a capacidade de atravessar o corpo e atingir colateralmente passageiros cuja vida se busca preservar. Essas mesmas munições não teriam capacidade de transpassar a fuselagem e não acarretariam danos que comprometessem a segurança do vôo. Munições fragmentáveis como a Glaser e a Mag-Safe surgiram da premissa de provocar o máximo de dano contra o alvo humano atingido, sem contudo o risco da transfixiação e mesmo do ricochete. Hoje tais munições bem como outras de desempenho similar estão largamente disponíveis para uso policial nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil não produzimos munições equivalentes e os custos de aquisição do produto importado nas quantidades que seriam desejáveis para implementar um treinamento efetivo seriam francamente proibitivos. De nada adiantaria treinar os homens com munições de tipo padrão (como as «Hollow-points +P» comuns), deixando as poucas balas especiais que se pudesse comprar para que eles disparassem apenas nas situações críticas reais do combate…
A seleção dos homens guarda muita similaridade com a seleção dos «grupos especiais» e seu treinamento também. Não é fácil conseguir alguém de perfil discreto, que tenha a disciplina de permanecer todo o tempo agindo como um passageiro comum, porém atento ao que ocorre no vôo; que tenha o senso de oportunidade de escolher o momento certo para intervir numa situação onde a maioria das pessoas se acovardaria e ainda possa sacar rápido e disparar de forma certeira apenas os tiros absolutamente necessários para neutralizar o criminoso. No Brasil muito poucos policiais e militares estariam efetivamente qualificados para isso, até porquê, excetuando-se as equipes de intervenção do batalhão de forças especiais do Exército, dos Fuzileiros Navais, dos Mergulhadores de Combate da Marinha, da Polícia Federal (e alguns grupos de operações especiais das polícias militar e civis), a grande maioria das polícias estaduais não pode dar-se ao luxo de treinar seus homens de forma esmerada, disparando em treinamento mais do que 50 tiros por ano. Uma alegada experiência » de combate» com tiros disparados quase à esmo nos tiroteios policiais em favelas, pouco ou nada qualifica para o serviço de segurança nas aeronaves. Infelizmente, nossos «Homens da Lei» pouco treinam ou quando o fazem empenham os parcos recursos próprios na compra de quantidades de munição muito aquém do desejável e necessário. O nível de acuracidade necessário aos seguranças de aeronaves pressupõe que cada homem dispare nos treinamentos centenas de tiros reais com regularidade. Além do condicionamento físico, das técnicas marciais de combate desarmado e da dispendiosa e constante prática de tiro, há de se disponibilizar áreas de treinamento específicas como uma fuselagem de avião desativada e isso também não é barato ou fácil de implementar quando contrapostos às nossas limitações orçamentárias.
O serviço do segurança numa aeronave comercial em vôo transoceânico pode, à primeira vista, parecer um passeio, mas não o é. O policial (ou militar) não estará viajando para desfrutar dos prazeres do vôo, por uma benesse de sua chefia ou mesmo para somar milhagens, gratificações, prêmios ou diárias aos seus vencimentos. O agente tem de estar entrosado com os demais companheiros escalados no mesmo vôo e não poderá relaxar e abster-se de tudo à volta, da mesma forma que fazem os passageiros comuns. O discreto agente deve estar consciente da responsabilidade que seu trabalho envolve, até porquê que a arma que porta não pode mudar de mãos e prestar-se a facilitar o serviço dos criminosos. O simples fato de que o referido vôo for indicado como «passível de problemas» (e que portanto necessite contar com uma equipe de segurança armada) por sí só justifica um redobrar de cuidados da parte dos seguranças.
Por certo o governo brasileiro ainda precisará elaborar normas gerais para regulamentar a presença de policiais armados em nosso vôos. Tais medidas complementarão a adoção de portas de cabine blindadas e todas os demais procedimentos de revista de passageiros e bagagens no solo. A Segurança só pode ser alcançada a partir de um conjunto de medidas que se combinam, umas às outras. Serviços de limpeza, abastecimento de aeronaves e fornecimento de refeições devem sofrer constante fiscalização. Além de dispor de recursos materiais de primeira ordem, há de se também investir na formação da mão de obra empregada em segurança no solo, uma vez que profissionais de baixo nível de instrução formal, mal pagos e precariamente treinados certamente não serão capazes de fazer frente a criminosos ardilosos ou a terroristas. Na re-avaliação de seus procedimentos de segurança, pós 11 de Setembro, os norte-americanos constataram que funcionários tercerizados, com pouco treinamento e baixa remuneração – empregados na função de guarda ou operação de equipamentos de inspeção como raios-X e detectores de metais – se constituíam num grande complicador na segurança física das instalações aeroportuárias e das aeronaves propriamente ditas. O ideal sempre será impedir que seqüestradores e terroristas subam à bordo e principalmente que possam trazer consigo suas armas e explosivos; porém, se as medidas de segurança aeroportuária falharem, a presença velada de policiais, armados e bem treinados, pode constituir-se na última salvaguarda das vidas dos inocentes no vôo.